quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Coragem no feminino

 

Hoje, quando forem 14.30 em Portugal e na Galiza, um casal de lésbicas vai-se dirigir a uma conservatória de Lisboa para formalizar o seu casamento. Teresa e Lena vão na companhia de um advogado, Luis Rodrigues, que, por já esperar um «não» da parte do conservador devido à definição no Código Civil do casamento como um contracto entre pessoas de sexo diferente, tem os papéis prontos para apresentar recurso. Baseado em quê? No artigo 13º da Constituição da República Portuguesa que proíbe, entre outras coisas, discriminação por motivo de orientação sexual. Ora, como o texto constitucional deve ter precedência - por ser a lei básica - o Código Civil incorre em inconstitucionalidade.



Nada disto é novo para quem tem estado atento às notícias, tanto na televisão, como nos jornais, rádios e nos blogues, mas gostaria de dizer umas quantas coisas.

Sobre a opinião de que o casamento é algo exlusivamente heterossexual e que, por esse motivo, o contracto da mesma natureza entre pessoas do mesmo sexo devia ter outro nome. Às pessoas que defendem esta posição não terá, por ventura, ocorrido um detalhe implícito nas suas próprias palavras: que o casamento é não só religioso, como também é civil, isto é, nenhuma delas defende que se deva chamar outra coisa quando duas pessoas de sexo diferente casam numa conservatória. Aceitam que tanto a cerimónia civil como religiosa são correctamente denominadas como «casamento», o que é curioso, porque quando no século XIX se instaurou o matrimónio civil gerou-se grande polémica, uma vez que quebrava com séculos de tradição em que a coisa equivalia necessariamente a uma cerimónia religiosa. Quase que consigo imaginar alguém da época a perguntar como é que se pode chamar casamento a uma coisa que não tem nada a ver com religião e hoje ouve-se o mesmo, bastando substituir a palavra «religião» por «união entre pessoas do mesmo sexo». Moral da história: as coisas mudam! E não há nenhum motivo racional pelo qual não se possa chamar casamento a um contracto homossexual: apenas o preconceito e a homofobia impedem a devida igualdade de direitos (e de definições!).

Pelo mesmo modo se responde ao argumento pomposo do PSD e do CDS-PP, de que Portugal tem uma tradição cultural a respeito do casamento que não inclui uniões homossexuais. A mesma ordem de ideias justificava a promiscuidade entre Estado e Igreja no século XIX, porque se defendia que o catolicismo romano era a religião tradicional portuguesa e, se quisermos ser mesmo consequentes, então os dois partidos que avancem com uma proposta de abolição do casamento civil: afinal, foi instaurado há menos de 200 anos, o que é pouco ao lado de outros 600 de história de Portugal enquanto nação independente. Ou isso, ou admitem que as tradições mudam e, nesse caso, uma vez que a própria Constituição o preconiza, os dois partidos de direita não têm qualquer argumento válido para não alterar o Código Civil.

A respeito de quem acha que «casal» implica necessariamente capacidade reprodutiva, ou seja, o acto de «acasalar» e, consequentemente, «procriar». Bem, basta perguntar se, nesse caso, vamos vedar o casamento aos casais em que um ou ambos os cônjuges sofrem de infertilidade, ou se vamos impôr o divórcio aos que, estando casados, não têm filhos por decisão própria. A etimologia nem sempre basta para constituir um argumento completo.

Finalmente, aos que acham que a questão não lhes diz respeito, porque não são gays ou, se são, não têm intenções de se casar. Aos primeiros, digo que isto é uma questão de direitos básicos de cidadãos portugueses e, como tal, algo que diz respeito a todos. Não se trata apenas de uma assinatura no papel: um casamento implica direitos legais, fiscais e sociais para ambos os cônjuges, coisas aparentemente tão simples como um poder visitar o outro num hospital em caso de internamento. Aos gays e lésbicas digo o mesmo e acrescento o seguinte: estas coisas funcionam como uma rede, isto é, cada avanço em direcção ao fim da discriminação puxa ou abre o caminho a outros, tanto legais, como sociais, porque quebra tabus, alerta consciências, ajuda a mudar mentalidades e cria novas oportunidades ou precedentes na lei. Uma coisa tão simples como o dar a mão ou um beijo a alguém na rua ou num café fica mais perto de se tornar num acto normal quando esse mesmo acto se torna normal numa cerimónia de casamento em qualquer parte do país.

Da coragem que a Teresa e a Lena demonstram, a maioria dos deputados portugueses não tem nem uma infima parte, eles que foram eleitos para exercer o poder legislativo e, como tal, deviam ser os primeiros a dar o exemplo de respeito pela Constituição. Para eles: ganhem vergonha na cara! Para elas: You go, girls!