segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Sátira Religiosa? Com todo o prazer!

 

Agora que um jornal iraniano publicou a primeira caricatura do Holocausto como forma de resposta às de Maomé (ver a notícia aqui), é boa altura para lembrar que aquilo que na terra do Komeni é visto como uma contra-ofensa, deve ser entendido por nós como uma manifestação essencial da liberdade de expressão e, como tal, não como um insulto, mas como uma coisa normal (e até salutar!).

Sinceramente, muito embora entenda quem diz que as caricaturas do profeta muçulmano são ofensivas, continuo sem compreender como é que a sua proibição ou, para usar um eufemismo, a sua não publicação, não constitui um atentado à liberdade de expressão. Porque ofende sentimentos religiosos e, como tal, devemos evitá-lo? Por favor...

Os Versículos Satânicos do britânico Salman Rushdie, livro publicado em 1989, foram considerados altamente ofensivos por muitos muçulmanos, tanto que gerou ondas de protestos no mundo islâmico e o autor teve a sua cabeça a prémio durante vários anos. À luz da actual controvérsia, devemos proibir a sua publicação?

O Evangelho Segundo Jesus Cristo do José Saramago foi considerado ofensivo pelos cristãos, uma obra blasfema, tanto que o então secretário de Estado adjunto da Cultura (persona mui beata, por sinal) impediu que o livro fosse premiado a nível europeu. À luz da actual controvérsia, devemos proibir que este Evangelho continue a ser publicado ou proibir a futura publicação de semelhantes obras?

Num episódio da sua Enciclopédia, Herman José punha uma das suas personagens a entrevistar Deus e Buda, sendo que este último acabava por puxar de uma arma para matar o entrevistador. Devemos proibir a transmissão e venda desta parte da série de humor por quebrar preceitos morais budistas?

Os britânicos Monty Python (abençoados sejam!) gozavam descarada e repetidas vezes com crenças e dogmas religiosos, representando Deus deste modo no Santo Graal...



... algo que vai contra a proibição hebraica (e não só) de representações da divindade por meio de ídolos ou imagens, ou produzindo a Vida de Brian, filme em que satirizaram a vida de Jesus por meio da de uma personagem paralela. À luz da actual controvérsia, devemos retirar os filmes e séries dos Monty Python das parteleiras da FNAC e afins?

O filme de 1999 Dogma foi também considerado ofensivo por muitos católicos: colocava em questão a infalibilidade da Igreja Romana, as indulgências, incluía um 13º apóstolo (que era negro, acrescente-se), uma descendente de Jesus Cristo e de Maria Madalena e, imagine-se só, Deus, além de gostar de descer à Terra para jogar softball, chega a ser protagonizado por uma mulher, mais propriamente pela Alanis Morissette. Devemos proibir a venda do filme por gozar tanto com os dogmas e crenças da Igreja Católica Romana? E o Código de da Vinci, o que fazer com ele? Afinal, o Vaticano desaconselha a sua leitura precisamente porque põe em causa a doutrina oficial, quebra limites impostos e preceitos religiosos e os católicos mais fervorosos protestam contra a adaptação cinematográfica do livro. Vamos proibi-lo por ser ofensivo?

O problema não está nas caricaturas; o problema está numa mentalidade imersa em fanatismo religioso, em crença fervorosa, em divino-dependência que é incapaz de questionar dogmas e crenças. O facto de uma multidão poder ser manipulada ao ponto de atacar e pilhar embaixadas porque um grupo de clérigos lhe disse que tinha que o fazer é sintoma disso mesmo: se essas pessoas nem se conseguem rir de si mesmas, se são incapazes de admitir o mais pequeno gracejo que seja sobre aquilo que têm como sagrado, como podem elas romper com a inquestionabilidade de que se servem os fanáticos religiosos?

Já o tinha dito nesta entrada e repito: rir, satirizar e caricaturar crenças - as nossas e as dos outros - é salutar, porque o humor torna o seu objecto redutível a uma piada, despe-o de inquestionabilidade e permite, desse modo, que seja criticável, analisável sem impedimentos dogmáticos. Há quem diga que com religião não se brinca. Errado! Deve-se brincar, rir, criar humor a partir dela: é essencial para que as crenças não se convertam em dogmas que justifiquem a acção de um bombista suicida ou que tornem inquestionável o clérigo que diz que tal acto bárbaro conduz ao paraíso. Citando o recente comunicado da Associação República e Laicidade:

Um alegado «dever de respeito» pelos «símbolos e figuras» religiosos não pode ser constituido em limite à liberdade de expressão, sob pena de destruir o debate livre e aberto que caracteriza as sociedades democráticas.

A liberdade de expressão não se rege por dogmas religiosos! Que se ria e que pelo riso se abra caminho à dúvida e à crítica!



Não te preocupes, Maomé... Aqui já fomos todos caricaturados.



Parem! Parem! Esgotámos as virgens!



Sinceramente, Sr. Maomé... umas quantas caricaturas dinamarquesas são o menor dos seus problemas de imagem... (na lista lê-se: Pesquisa de Relações Públicas, Islamismo: terrorismo, tirania teocrática, subjugação das mulheres, intolerância, perseguição dos muçulmanos moderados, medo da cultura ocidental e imagens de porquinhos).





Moisés...os seus primeiros anos. Moisés!! Pára com essa merda e toma o teu banho!

E para que não julguem que eu sou incapaz de me rir das minhas próprias crenças, tomem lá disto. A primeira ligação - Ask a silly question... - é particularmente deliciosa ;)

5 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Bem, concordo no geral com o que tu escreveste.. e é quase irónico pensar que os fundamentalistas religiosos que vivem na Europa ( o melhor caso é a Inglaterra) onde usam e abusam da nossa liberdade de expressão para dizerem o que bem lhes apetece (como incentivar à morte, à agressão, ao terror, ao crime contra infiéis) se virem agora contra essa mesma liberdade que lhes permite permanecer nos nossos países. Bem, alguma coisa não bate certo nisto..
E falam em blasfémia e coisas assim arrancadas do baú das palavras religiosas, então e não foi pela blasfémia que se conseguiu evoluir um pouco mais e libertar a Europa (em grande parte) das amarras que a igreja colocava à liberdade de pensamento e às próprias democracias?
Porque é que uns tantos milhares foram queimados? Não foi pela blasfémia? E resultado? O que era blasfémia antigamente.. revelou-se a verdade ou pelo menos o caminho mais correcto actualmente. Então e o Islão quer um tratamento diferente? Porquê? Porque continua preso a dogmas e ele próprio é uma caricatura da igreja católica da idade média. E pior, é que é totalmente proibido mexer no Islão, o que dá ainda melhor ideia de como a sociedade está imutável e presa a algo que, na minha opinião, já não é cultura mas sim opressão. Ok ok, há moderados e países também que olham o Islão de forma moderada, tudo bem, totalmente de acordo e com total respeito.. mas quantos são? E os moderados abrem a boca? Quem está á frente das potências árabes não são fundamentalistas? Pelo que pareceu nestas reacções, o Islão é definitivamente controlado por eles.
Agora não me venham impor regras ao meu próprio país, eu sou solidário com o Oriente quando o vejo ser agredido pelo ocidente mas neste caso não há qualquer razão para ter essa solidariedade e muito menos entender as reacções, porque aquilo é mais ódio baseado na ignorância do que outra coisa.
E quando o ódio impera, o diálogo torna-se miragem e a paz numa realidade cada vez mais distante, infelizmente.
E já agora, cá o Freitas do Amaral, que parece que não esqueceu a sua veia religiosa cristã (mesmo no governo, nunca me enganou) veio dizer que tinham que ter bom-senso antes de fazerem caricaturas ou criticarem as religiões. Ora, esta foi a piada do mês. Mas que bom-senso? Com bom-senso não existia critica e já agora respeito por quem? Agora a critica é assim? "Ah eu sou simpático contigo e tu em troca também és comigo e andamos sempre bem, combinado?" Bom-senso com quem ou com o quê? É que faltou esse detalhe..
Enfim, um episódio infeliz desse senhor, ao qual os deputados do PP devem ter comentado "Afinal ele ainda é um democrata-cristão, pronto já temos representação no governo, xau oposição!"
lol
Bem, xauzito amigo;) um abraço[[]]

12:03 da manhã  
Blogger pedro disse...

Caro Amigo Hélio,

Como já te disse noutras ocasiões, não é proibir ou não o que está em causa, mas sim ter ou não o bom senso de dizer e de gozar alarvemente com os sentimentos mais profundos dos outros, sejam religiosos, sociais ou outros.

Eu também acho muita piada a um quadro que está no Prado em Madrid, em que a Nossa Senhora esguicha leite do seu peito para um frade. Mas está correcto? Don't think so. É uma questão de respeito.

10:30 da manhã  
Blogger Héliocoptero disse...

Não acho que haja qualquer mal nesse quadro. Se fosse um incitamento escrito ao ódio, se elogiasse a destruição e massacre de crentes e outras coisas tais, aí sim já o podia condenar. Mas a mera representação humorística de Nossa Senhora a esguichar leite para um frade não tem nada de mais.

O problema está não no quadro, mas sim na pessoa que se ofende por tudo e por nada. Fazia-lhe bem levar as suas crenças de um modo menos absoluto: não deixariam de ser menos sérias por isso, apenas menos propensas ao fervor religioso exacerbado.

11:13 da manhã  
Blogger pedro disse...

Talvez eu não me tenha sabido explicar. Envio-te um texto da Ana Gomes, que tem muita mais experiência em relações internacionais do que nós alguma vez teremos. Espero que seja elucidativo.

«Importava demarcar a União Europeia dos propósitos ofensivos dos "cartoons" dinamarqueses, importava declarar que a Europa rejeita a xenofobia, que os objectivos da acção externa da União Europeia são postos em causa quando se publicam provocações como as do tal jornal dinamarquês de extrema-direita. Importava acima de tudo sublinhar que a liberdade de expressão no espaço público europeu - uma das conquistas da nossa civilização e da humanidade - não é posta em causa quando se consideram certas mensagens como racistas, estigmatizantes e fora de qualquer consenso do debate civilizado. Importava mostrar que a Europa não alimenta a tese do confronto de civilizações porque acredita na universalidade dos direitos humanos.
Mas o Representante Especial do Conselho Europeu, a cara da Política Externa e de Segurança Comum da União, Javier Solana, não foi capaz de demarcar, na altura certa, a Europa deste tipo de discurso. Agora, à pressa para corrigir a ausência inicial das instituições europeias (Conselho e Comissão) neste debate, Solana decide emendar a mão. E a emenda é bem pior que o soneto.
Numa conferência de imprensa conjunta com o Secretário Geral da Organização da Conferência Islâmica (OIC) em Jeddah, Solana pronunciou-se ontem a favor da pretensão dos governos representados na OIC - a maior parte ditatoriais e violadores dos direitos humanos -de uma acção das Nações Unidas contra a "difamação da religião", indo até ao ponto de admitir que se incluísse linguagem contra a "blasfémia" nos estatutos do futuro Conselho dos Direitos Humanos da ONU (que deverá substituir a actual Comissão de Direitos Humanos da ONU)
Mas não se trata aqui de proteger 'a religião', qualquer religião. Não se trata até de considerar a religião como uma ordem de valores que deva ser mais respeitada do que qualquer outra. Não se trata, sobretudo,de por em causa a organização secular da ONU e de muitos Estados Membros da ONU (e estes não são apenas ocidentais, como demonstram países de população maioritariamente muçulmana como a Indonésia e a Turquia).
Trata-se, sim, de demarcar a Europa de mensagens de incitamento conflitual que tomem todos os membros individuais de um grupo - seja ele étnico, religioso, nacional, etc - por gente perigosa, pelo simples facto de pertencerem a esse grupo.
Goze-se com Jesus, Moisés, Maomé, se se quiser e faltar o bom senso. A liberdade de expressão permite-o. Mas quando programas na televisão sobre Jesus ou o Papa insinuarem que todos os católicos são pedófilos; mal um texto sobre Moisés for aproveitado para negar o holocausto; mal um cartoon sobre Maomé servir para apresentar o Islão como árabe e todos os árabes e muçulmanos como terroristas - chegámos aos limites da liberdade de expressão. Cabe então às forças políticas progressistas (não conto muito com a Direita para estas coisas irrelevantes da 'diversidade'), e às instituições da União, antes de mais, distanciar-se.
Javier Solana fê-lo tarde e mal, meteu os pés pelas mãos.
Solana passou claramente o prazo de validade. Nestes tempos conturbados, não chega um mínimo denominador comum para a UE. Para isso já temos Durão Barroso na Comissão.»

Ana Gomes in blog Causa Nossa

5:01 da tarde  
Blogger Héliocoptero disse...

Volto a dizer aquilo que já te disse no MSN: muito embora algumas das caricaturas dinamarquesas sejam claramente ofensivas, outras há - como a do esgotar das virgens ou a do cartonista que tenta desenhar sem ninguém ver - que acertam em cheio em pontos que devem ser debatidos, criticados, analisados.

Para os radicais islâmicos, a própria representação de Maomé é já uma ofensa: vamos, por isso, deixar de caricaturar o referido profeta? A liberdade de expressão não se rege por dogmas religiosos e quando deixarmos de nos expressar livre e legitimamente - e a caricatura é uma forma de expressão legitima e essencial em democracia - então podes ter a certeza que os fundamentalistas religiosos ganharam.

6:06 da tarde  

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